Desde pequena gostei muito de ler e de escrever. Me imaginava uma futura escritora, imaginava os livros que eu iria escrever, desenhava a capa, escolhia a editora… Lembro que escrevia ainda naquele computador com o sistema MS-DOS com aqueles disquetões, e meu pai havia feito alguma gambiarra que a nossa impressora era uma máquina de escrever ligada ao computador. Mas divago.
Quero chamar a atenção para um fato: por muito tempo, enquanto eu escrevia minhas histórias, meus narradores eram homens. À época já eu me dava conta disso, me perguntava porque eu preferia tanto sair escrevendo um narrador masculino. A resposta: porque era mais natural. Afinal, eu passei a escrever por gostar muito dos livros que eu lia, e quase todos eram centrados em personagens masculinas. Os livros mais emocionantes, de aventura, magia e mistério eram sempre centrados em figuras masculinas, mesmo quando havia personagens femininas no grupo principal, sei lá. Isso se agravou quando passei a ler clássicos da literatura, nos quais as mulheres muitas vezes nem têm qualquer papel mais especial além de ser o “love interest”, e quase nunca são as narradoras. O narrador é sempre visto como um homem, mesmo que não seja em primeira pessoa, imaginamos que é um homem a contar a história.
Alguns exemplos dos meus livros preferidos na época: Oliver Twister, A Fantástica Fábrica de Chocolate, O Lago da Memória (um livro de um autor brasileiro chamado Ivanir Calado, não sei dizer quantas vezes li esse livro, adorava), O Menino no Espelho, Cazuza (do Viriato Correia, não é sobre o cantor), O Meu Pé de Laranja Lima, A Volta ao Mundo em 80 Dias, Pollyanna, O Jardim Secreto, A Princesinha, O Gênio do Crime, Sangue Fresco, alguns livros do Pedro Bandeira, O Físico (eu amava esse livro, do Noah Gordon) e sua continuação, O Xamã, também do mesmo autor O Último Judeu. Quando Harry Potter saiu, me apaixonei pela série, e comecei a ler também uma série de outros livros de magia, como a série A Sétima Torre (cujos protagonistas são um menino e uma menina que vem de uma sociedade matriarcal, agora me lembro), a série Os Mundos de Crestomanci (o personagem principal é um menino/homem, dependendo do livro, o Gato Chant), Senhor dos Anéis (é praticamente o clube do bolinha essa série huauha) e a trilogia das Fronteiras do Universo (A Bússola Dourada, A Faca Sutil e A Luneta de Âmbar, pelo que me lembre). Aliás, essa última é a única que tem como personagem principal uma garota. Mas a maioria desses livros é centrada em meninos, homens, enfim. As exceções são: Pollyanna, O Jardim Secreto (que ainda assim, a história depois se centra mais nos meninos da história, o Dickon e o filho do Craven, esqueci o nome dele) e A Princesinha (aqui é só girls only mesmo, e eu adorava esse livro huahua).
Pollyanna cheirando margaridas e Oliver Twist correndo por aí.
Mas percebo também que muitos dos livros que mais me marcaram tinham personagens femininas em destaque, talvez por isso parecer ser tão raro. Por exemplo, a série também de magia, a do Trílio Negro, que foi escrita por três autoras (Marion Zimmer Bradley, Andre Norton e Julia May). Cada autora era encarregada por uma das três personagens principais, que eram três irmãs que deveriam salvar o reino delas. Lembro que aqueles livros foram maravilhosos de ler na época (tinha uns 10 anos) porque eu podia me identificar tanto com elas. E cada uma tinha uma personalidade diferente. A Kadiya, por exemplo, personagem da Andre Norton, era do tipo que gostava de lutar, que não aceitava fugir de um confronto, andava por pântanos sem reclamar etc. Já a Anigel, personagem de Julia May, era mais do tipo “delicado”, digamos. Mas todas eram fortes e originais à sua maneira.
O meu livro preferido da infância, que não incluí na lista anterior, é de quando eu comecei a aprender a ler. Ele também tinha como personagem principal uma menina: era Matilda, do Roald Dahl. A personagem principal era uma menina odiada pelos pais, que se destacava por ser muito inteligente, por amar ler livros, e era através dessa sua inteligência que ela age durante todo o livro. Não sei dizer também quantas vezes li esse livro, querendo ser que nem a Matilda.
Matilda é poderosa porque ama ler e é inteligente, yey!
Mas antes de conhecer esses livros de magia, ou seja, na minha era “pré-HP”, eu lia todos aqueles livros que citei antes. E enquanto a histórias centradas em figuras masculinas eram cheias de aventuras, deslocamentos por vários lugares, conflitos etc, as de meninas ocorriam mais em ambientes privados: a Princesinha ocorre dentro de um internato; O Jardim Secreto, dentro de uma mansão; Pollyanna, dentro de uma mansão. E em comum, as três personagens não têm mãe e pai – a Princesinha pode até ter um pai, mas ele tá na guerra -, e são levadas sozinhas a um ambiente estranho, onde elas têm que “conquistar” seus novos mentores e figuras adultas na vida.
As aventuras da Princesinha e de Mary Lennox
Eu adoro essas personagens, não me levem a mal, mas é gritante a diferença entre elas e seu mundo privado e os meninos e suas aventuras diversas. Matilda, ainda que se desloque entre a escola, a casa etc, ainda é também restrita ao mundo privado. Os principais conflitos dessas personagens femininas são de relações interpessoais: com os pais, com amigos, com novos mentores no caso de meninas órfãs etc. Ou seja, são conflitos “privados” também, digamos. Ainda que possam ser personagens fortes e inspiradoras, são personagens que não saem pelo mundo afora em busca de aventuras. Ia ser muito mais interessante se os livros contassem aventuras de todos os tipos tanto de meninos quanto de meninas, sem essa divisão.
Na literatura mais adulta, tenho a sensação que o mesmo ocorre muitas vezes. Livros centrados por mulheres apresentam conflitos muito mais subjetivos e/ou privados do que os centrados em homens. Um exemplo mais popular: chick flicks. O mesmo acontece nos filmes: o padrão é filme estrelado por homens ou um homem, e quando nos desviamos desse padrão, se tornam comédias românticas, quase sempre. Mulheres envolvidas em seus conflitos românticos, basicamente. Obviamente há várias e boas exceções, mas elas não são suficientes para reverter o quadro.
Então diante de tudo isso, talvez eu entenda o porquê de quando eu queria escrever histórias mais emocionantes, eu escrevesse sobre um menino ou sobre um homem. Só mais tarde passei a me centrar em personagens femininas nas minhas histórias, e não por acaso, foi depois de conhecer os livros de magia e aventura protagonizados por mulheres. Acho que posso dizer, com segurança, que uma representação mais diversificada na literatura infantil de meninos e meninas com certeza afetaria positivamente as futuras criações e a maneira como as próprias crianças se enxergam enquanto pertencentes a um gênero ou a outro.
E se eu fosse então falar sobre representação de negros na literatura, ou melhor, de negras, a situação iria ficar ainda mais complicada. E de homossexuais, então? A gente fala muito de filmes, de séries de TV, novelas, mas muito pouco dos livros. Talvez por eles parecerem mais intocáveis, ficam ali, mui sisudos nas estantes respeitáveis etc, mas vale um questionamento também. Ninguém vai mudar o que foi escrito – e eu não gostaria, certamente, que fizessem isso huauha -, mas acho que vale o questionamento, identificar como a obra confirma ou não papéis de gênero, e como ela pode afetar a visão de um garoto ou uma garota que a lê.
Girl Reading, de Charles Edward Perugini, 1879